Fica claro que atual forma de licenciamento brasileiro, amparada exclusivamente na Avaliação de Impacto Ambiental – AIA, privilegia a esfera econômica em detrimento as demais esferas.
No âmbito federal, âmbito que eu trabalho há mais de 20 anos, o nível de emancipação da esfera ecológica em relação às esferas econômica e socioideológica ao longo da cadeia de tomada de decisão do setor público (Política > Plano > Programa > Projeto > Ação) é que determinará a presença ou não de um processo realmente sustentável, o chamado novo capitalismo ou capitalismo de stakeholder. Ou seja, se a variável ambiental só é introduzida na discussão na etapa de licenciamento ambiental, e esse só atua no nível de projetos (lá no final da cadeia decisória), é óbvio que a variável econômica, incluída desde o desenho da política, é a determinante.
Vamos a um exemplo prático: Durante uma Audiência Pública para discussão do projeto de uma Usina Nuclear, uma parte significativa dos presentes era composta por pessoas de fora da região afetada. Essas pessoas, cientes da relevância da discussão para o país, compareceram para expressar sua posição contrária ao desenvolvimento da energia nuclear no Brasil. No entanto, é importante ressaltar que a decisão de diversificar a matriz energética nacional, incluindo a tecnologia nuclear, já havia sido tomada em nível de política energética nacional. Essa decisão estava integrada ao Plano Decenal de Expansão de Energia e fazia parte do Programa de Aceleração do Crescimento, sendo considerada uma das obras prioritárias. Em outras palavras, a construção da usina nuclear já estava decidida antes mesmo da audiência pública.
O licenciamento ambiental, no formato atual, tem como objetivo discutir e definir os atenuantes necessários para os impactos de projetos em uma determinada região. Isso inclui avaliar alternativas tecnológicas e locacionais. Em alguns casos, o empreendimento pode até se mostrar inviável para operação naquela localidade. As audiências públicas desempenham um papel crucial nesse processo, pois representam o único momento formalmente construído para a manifestação popular durante toda a cadeia decisória.
Geralmente o que acontece nessas audiências são discussões descompassadas, com o empreendedor interessado em aprovar o projeto, a população interessada em discutir a política e o órgão licenciador, inábil e sem instrumentos para mediar a discussão, interessado em legitimar sua decisão. Os resultados são, em geral, frustrantes para todas as partes.
É fundamental que haja um esforço contínuo para melhorar a qualidade das audiências públicas, distribuindo-as ao longo do processo decisório e garantindo que elas sejam espaços eficazes para o diálogo e a participação da sociedade na tomada de decisões ambientais.
Para uma real emancipação da esfera ecológica em relação às demais esferas (econômica e socioideológica) no universo dos Megaprojetos brasileiros, sugiro para o setor governamental uma série de medidas. Abaixo seguem algumas em lista, obviamente, não exaustiva:
- O licenciamento ambiental deveria apoiar-se no tripé AIA – AAE – AIC: A Avaliação de Impacto Ambiental – AIA é a base do licenciamento ambiental, fornecendo uma análise profunda dos impactos potenciais de um projeto em seu local específico. Essa avaliação deve ser abrangente e considerar os aspectos sociais, econômicos e ambientais, tanto em curto quanto em longo prazo. A AIA deve ser realizada por profissionais qualificados e independentes, com total transparência e participação da comunidade local. A Avaliação Ambiental Estratégica – AAE complementa a AIA, expandindo a análise para um nível mais amplo, considerando políticas, planos e programas que podem ter impactos cumulativos no meio ambiente. Essa avaliação permite identificar e prevenir problemas antes que se concretizem, promovendo a sustentabilidade em um nível regional ou setorial. A AAE deve ser realizada por órgãos governamentais com expertise em planejamento ambiental e gestão territorial. A Avaliação de Impactos Cumulativos – AIC avalia os efeitos combinados de diferentes projetos e atividades em uma mesma área, ao longo do tempo. Essa avaliação é crucial para identificar e mitigar os impactos sinérgicos que podem ser negligenciados pelas AIAs individuais e deve ser realizada por equipes multidisciplinares, com expertise em diferentes áreas como ecologia, geografia e socioeconomia.
- Esse tripé deve estar calcado na elaboração de uma Política Nacional de Licenciamento Ambiental – PNLA, que estabeleça novos instrumentos que garantam a incorporação das questões socioambientais nas etapas iniciais de decisão dos grandes projetos de infraestrutura.
- Obviamente a nova PNLA deve trazer a regulamentação da Avaliação Ambiental Estratégica no Brasil. No caso dos grandes projetos de infraestrutura é importante o estabelecimento de critérios para a construção de Avaliações Setoriais. Assim poderíamos ter, por exemplo, avaliações do Setor de Energia e dos Subsetores Petróleo e gás, Eólico ou Nuclear. No caso do Setor de Transportes teríamos avaliações nos Subsetores Portos, Ferrovias, Rodovias, etc. Esta seria uma forma de garantir que a variável ambiental seja inserida no nível de Política. O desenvolvimento das Avaliações Ambientais Estratégicas Setoriais – AAES possibilitaria o estabelecimento de critérios para as Avaliações de Impactos Cumulativos Regionais – AICRs, que seriam construídas de forma participativa e coordenadas (em conjunto) pelos órgãos estaduais de meio ambiente e pelas Prefeituras, de forma sempre vinculada aos resultados das AAES.
- O desenvolvimento de instrumentos de integração dos órgãos intervenientes (ambientais, de saúde, proteção étnica, …) envolvidos no processo de licenciamento. Isto poderia ser feito em dois níveis. Em nível local através de câmaras técnicas ligadas às AICRs e em nível nacional nas câmaras técnicas vinculadas as AAES. Uma maior integração, principalmente entre as agências ambientais das três esferas de governo (IBAMA, OEMAs e Secretarias Municipais de Meio Ambiente), é imprescindível para melhoria na identificação, mitigação dos impactos dos Megaprojetos e na construção e implementação de Políticas Públicas de mitigação e compensação eficientes em nível local.
- A incorporação de novas etapas e espaços de participação popular no processo de licenciamento ambiental, como um sistema continuado de Audiências Públicas (ou Audiências de prestação de contas) intercaladas às emissões das licenças prévia, de instalação e de operação. A obrigatoriedade de disponibilização por parte do empreendedor de uma página na internet específica para cada projeto em licenciamento, disponibilizando todos os estudos e documentos técnicos do empreendimento, contendo uma interface para que o usuário se manifeste, pode ser um movimento simples e eficiente nesse sentido. Isso já acontece em alguns casos e os resultados são muito bons.
- A participação popular nas fases anteriores ao início do processo de licenciamento, durante a construção da política setorial (energética, de transportes, meio ambiente etc.), também deve ser facilitada. Audiências Públicas regionalizadas tendo como tema de discussão as Políticas, Planos e Programas estratégicos e o desenvolvimento de ferramentas de participação virtuais durante a elaboração das AAEs são boas soluções para o envolvimento da sociedade anteriormente ao início da implementação da AIA de projetos.
- É extremamente relevante que a construção, condução e coordenação dessa nova política seja transversal e não esteja vinculada apenas a um ou dois ministérios ou secretarias de governo.
- Novos indicadores de desempenho e progresso social, desapegados do modelo de crescimento econômico tradicional, devem ser desenvolvidos. Apesar de parecer utópico e distante, um novo paradigma econômico – ecológico, não só mais inteligente ambientalmente, mas com distribuição mais equitativa da riqueza e dos riscos envolvidos no processo de alta modernização, deve ser colocado como meta para gestão pública em todas as esferas de governo. Sem essa mudança de postura, os impactos ambientais de Megaprojetos continuarão sendo caracterizados como meras externalidades do processo de crescimento econômico.
Embora o licenciamento ambiental seja nossa principal estratégia para conciliar interesses e aprimorar projetos, enfrentamos desafios ao adotar uma abordagem inclusiva e abrangente. Isso nos permite assegurar que os grandes projetos de infraestrutura realmente contribuam para um desenvolvimento social e ambiental mais equitativo e sustentável.
A abordagem atual de análise ambiental, que se caracteriza por processos de licenciamento independentes e se concentra exclusivamente na Avaliação de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), tem falhas significativas que enfraquecem essa estratégia. Essa fragmentação dificulta a identificação precisa e a mitigação adequada dos impactos negativos, além de limitar a maximização dos benefícios dos projetos. Além disso, expõe o licenciamento a opiniões reducionistas e injustas que o veem como um obstáculo ao desenvolvimento, o que é um equívoco.
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